domingo, setembro 05, 2004

Nordestes

O campo é bonito visto assim, ao longe, de memória. Perde o cheiro a estrume, já não suja as mãos. De memória, as moscas do gado já não picam, as silvas já não arranham as pernas, o pó não seca as narinas. A paisagem é muito mais bonita, de longe. Aqui sentado, ganha tons de aguarela. A paisagem lá mesmo, dentro da paisagem, é muito mais dura. Tem bicharada e não há roupa que resista.

Eu não penso que os transmontanos sejam melhores ou piores que os outros. Mas o facto de terem sido sempre esquecidos permitiu-lhes guardar memórias que os filhos e netos das cidades já esqueceram. E antes que a Televisão vire definitivamente a única memória oficial, aproveitemos para falar do campo, mesmo arriscando já só conseguir fazê-lo em tons de aguarela.

Porque na verdade, eu tenho um grande respeito por esse povo rústico, iliterato do Minho, da Galiza, de Trás-os-Montes que mal falava um latim mal aprendido de ouvido. Foram esses labregos, esses parolos, mais tarde com a ajuda dos saloios, que inventaram esta língua lindíssima que hoje me diverte e tortura. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, mais ou menos 5 milhões de indígenas falavam 1175 línguas diferentes. Hoje, 270 mil falam 170, talvez menos.

Cada vez que morre um idioma, é um bocado do património universal que se perde. Hoje morre o latê, amanhã morre o Português. E antes que o Americano vire língua única, universal, aproveitemos para respeitar a pouca memória que nos vai restando. [O Americano pode ser uma língua muito mais prática do que foi o Latim, mas não chega a todos os recantos da alma.]

Além disso e afinal, como dizia aquela senhora índia que o Júnior Sampaio entrevistou no Brasil: "A nossa língua é a nossa identidade."

Por favor desliguem os telemóveis.


José Carretas



Manuel Mogadouro Cá na aldeia havia um velho Capitão, tipo seco, duro, de antigamente. "Disciplina, respeito". Está a ver?

Kleber Não só vejo como sou filho de um, são os nossos coronéis.

Manuel Mogadouro Este capitão, quando lhe nasceu o primeiro filho, pegou no quase recém-nascido e atirou-o ao tanque da Quinta.

Kleber A Selecção Natural, a Lei do mais forte... E o né-ném aprendeu a nadar como você.

Manuel Mogadouro Morreu afogado.

Kleber Foi preso o seu Capitão?

Manuel Mogadouro Já viu algum "Coronéu" ir preso, lá no seu Nordeste? Dois anos depois, nasceu-lhe uma filha. O mesmo ritual do tanque...

Kleber E a criança morreu.

Manuel Mogadouro Hoje é uma mulher dura e seca, como o pai. Sabe qual foi o comentário do homem quando o bebé veio à tona de água? "Que alívio, cheguei a pensar que a teoria pudesse estar errada!"

Kleber [irónico] Mas é assim que se faz a raça Lusitana.

Manuel Mogadouro [igualmente irónico] A raça Lusitana!... Há alguns portugueses com costados lusitanos... Tal como há portugueses mouros, suevos, alanos, fenícios, gregos, malteses, iberos, cartagineses, muitos, muitos africanos, gauleses, judeus, ciganos... E às vezes, chega a haver portugueses com costados... portugueses. O português é mistura mais forte que a raça pura. É a massa mais consistente, talvez por ser descendente de muita gente.

Kleber "O brasileiro traz dentro de si

Um português, um negro e um índio guarani"

Manuel Mogadouro Ganhou.

Kleber "Mas eis que no esplendor da raça, uma mulata passa...

O negro dança.

O índio pega fogo

E o português... avança!"

Manuel Mogadouro Ganhámos.


in Nordestes, de José Carretas e Júnior Sampaio


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