Eugénio de Andrade
Poema - À memória de Eugénio de Andrade
de José Luís Peixoto
As palavras a assentarem sobre o silêncio. Cada uma das palavras a assentar sobre os objectos que nomeia e a envolvê-los. Existe em cada instante uma organização e uma tranquilidade da natureza. Ao mesmo tempo, cada palavra é a pedra de estátuas a olharem para séculos com os mesmos olhos que não vêm os jardins ou o musgo que lhes cobre a pele. Quando se passa um dedo pela página sente-se essa pele de pedra e de musgo. Mas existem também os gestos, brancos e necessários. É nesses gestos que nasce o vento. É esse vento, branco e necessário, que passa pelas palavras e que as veste novamente de silêncio para que cheguem novas palavras e sejam únicas.
Existe também uma mesa, uma cadeira e o corpo de um homem que faz parte dessa mesa e dessa cadeira. A constância da manhã é também o corpo desse homem germinal. O tempo está preparado para a explosão que existe dentro de si e que é uma ressurreição do próprio tempo. As palavras dizem esse milagre, mas não o explicam. O homem fica, a mesa e a cadeira, o homem fica, há também uma janela, o homem fica com esse milagre na palma da mão. Vê-o elevar-se até ao ponto mais infinito depois do céu. Aquilo que era mais importante ficou com o homem e com as palavras. Ninguém poderá chegar a esse momento em que o homem e as palavras se misturam. Ao contrário de todos os momentos do tempo, esse foi um momento imortal. E tudo o que era simples, tão simples, não pôde ser dito senão por metáforas. O homem olha para as metáforas que são como fumo, como árvores, e lembra-se da palavra proibida: amor. Existe qualquer coisa que está em todas as metáforas e que está dentro dessa palavra proibida. O homem vê o milagre subir para o céu, a combustão das palavras, as metáforas, o fumo, e lembra-se da vida, silêncio, pedra, musgo.
E tudo o que era simples, tão simples, uma única palavra proibida, escorreu com o sangue, fios de sangue a desenrolarem-se e a escorrerem pela cal. A manhã a atravessar o sangue que cobria a janela. A manhã a tocar o sangue que cobria a mesa e as páginas. Uma única palavra proibida. Um único milagre. E o silêncio, vento, a chegar como uma maré, como sal, como luz, e a cobrir cada objecto, e a anteceder as palavras que os envolvem. O homem esquece os braços e os olhos. A vida existe fora do seu corpo. O seu corpo existe fora do seu corpo. Nas palavras, o homem procura água. O homem vive, está vivo e encontra água. Os versos escorrem água. As letras são sonhos de água. O poema é um milagre, silêncio, séculos, pedra, tranquilidade, vento, uma mesa, uma janela, um homem, fumo, tempo, céu, amor, amor, amor, sangue, manhã, luz e água. O poema é um milagre, amor e água. Depois, cada palavra retira-se devagar dos objectos que nomeia. Depois, o silêncio.
Adeus
de Eugénio de Andrade
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
de José Luís Peixoto
As palavras a assentarem sobre o silêncio. Cada uma das palavras a assentar sobre os objectos que nomeia e a envolvê-los. Existe em cada instante uma organização e uma tranquilidade da natureza. Ao mesmo tempo, cada palavra é a pedra de estátuas a olharem para séculos com os mesmos olhos que não vêm os jardins ou o musgo que lhes cobre a pele. Quando se passa um dedo pela página sente-se essa pele de pedra e de musgo. Mas existem também os gestos, brancos e necessários. É nesses gestos que nasce o vento. É esse vento, branco e necessário, que passa pelas palavras e que as veste novamente de silêncio para que cheguem novas palavras e sejam únicas.
Existe também uma mesa, uma cadeira e o corpo de um homem que faz parte dessa mesa e dessa cadeira. A constância da manhã é também o corpo desse homem germinal. O tempo está preparado para a explosão que existe dentro de si e que é uma ressurreição do próprio tempo. As palavras dizem esse milagre, mas não o explicam. O homem fica, a mesa e a cadeira, o homem fica, há também uma janela, o homem fica com esse milagre na palma da mão. Vê-o elevar-se até ao ponto mais infinito depois do céu. Aquilo que era mais importante ficou com o homem e com as palavras. Ninguém poderá chegar a esse momento em que o homem e as palavras se misturam. Ao contrário de todos os momentos do tempo, esse foi um momento imortal. E tudo o que era simples, tão simples, não pôde ser dito senão por metáforas. O homem olha para as metáforas que são como fumo, como árvores, e lembra-se da palavra proibida: amor. Existe qualquer coisa que está em todas as metáforas e que está dentro dessa palavra proibida. O homem vê o milagre subir para o céu, a combustão das palavras, as metáforas, o fumo, e lembra-se da vida, silêncio, pedra, musgo.
E tudo o que era simples, tão simples, uma única palavra proibida, escorreu com o sangue, fios de sangue a desenrolarem-se e a escorrerem pela cal. A manhã a atravessar o sangue que cobria a janela. A manhã a tocar o sangue que cobria a mesa e as páginas. Uma única palavra proibida. Um único milagre. E o silêncio, vento, a chegar como uma maré, como sal, como luz, e a cobrir cada objecto, e a anteceder as palavras que os envolvem. O homem esquece os braços e os olhos. A vida existe fora do seu corpo. O seu corpo existe fora do seu corpo. Nas palavras, o homem procura água. O homem vive, está vivo e encontra água. Os versos escorrem água. As letras são sonhos de água. O poema é um milagre, silêncio, séculos, pedra, tranquilidade, vento, uma mesa, uma janela, um homem, fumo, tempo, céu, amor, amor, amor, sangue, manhã, luz e água. O poema é um milagre, amor e água. Depois, cada palavra retira-se devagar dos objectos que nomeia. Depois, o silêncio.
Adeus
de Eugénio de Andrade
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
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