domingo, abril 24, 2005

Entreabrir a Porta para o Interior - I

Há dias o João Tunes do Água Lisa dizia-me, a propósito de um comentário que fiz num dos seus posts, que começava a compreender o porquê do meu nickname ser Werewolf (Lobisomem). Respondi-lhe que aos poucos iamos revelando os nossos pequenos segredos.

O seu comentário e a minha resposta levou-me a escrever este artigo, isto é, a entreabir uma porta para o meu eu. Aos leitores que habituamnete lêm os meus artigos nos diversos blogs que vou mantendo talvez interesse e até desafie a que façam o mesmo, que se mostrem um pouco, aos outros não deixará de ser um post banal e desinteressante.

Para aqueles que interessa desafiar cá vai um pouco de mim, para os restantes peço desculpa pela banalidade e assomo de vaidade narcísica.

Sou natural do Porto e actualmente vivo numa das cidades dos arredores da cidade para onde a classe média foi empurrada. Sou filho de pai beirão natural de uma localidade situada nas proximidades da Serra da Estrela, Nelas, e de mãe alsaciana, mas já nascida no Porto. Sou sexto e último filho desta união, com uma grande diferença de idades em relação aos restantes irmãos. Como não conheci nenhum dos meus avós, que já tinham falecido quando nasci, considerava os meus pais como meus avós e gabava-me de ter vários pais e mães, os meus irmãos, considerando os meus primeiros sobrinhos, com os quais convivia quase diariamente e sendo praticamente da mesma idade que eu, como sendo os meus verdadeiros irmãos, o que como imaginam, povou a minha infância de alegria, mas também de contradições.

O meu avô materno, natural de Mulhouse na Alsácia, segundo me disseram, filho de uma família de limpa-chaminés, profissão suja, mas importante em plena revolução industrial e em zonas frias, veio para o Porto no início do século XX e aqui casou com a minha avó, burguesa do Porto e descendente de escoceses. O meu avô, que tinha estudado química na Bélgica, veio para o Porto por convite de uma grande fábrica têxtil portuense e portuguesa, hoje já desaparecida, ali para os lados da Praça da Galiza (onde se encontra uma estátua em homenagem à grande poeta galega Rosalia de Castro), a fábrica Jacinto, pois, segundo me contaram tinha inventado, ou desenvolvido, uma fórmula que tinha a particularidade de fixar as cores dos tecidos e evitava que estes desbotassem com as lavagens. Segundo os relatos que chegaram até mim era uma pessoa solitária e íntegra. Em relação à sua terra natal fruto da cobiça entre franceses e alemães, com um dialécto próprio derivado do alemão, dizia frequentemente que a sua Alsácia "não prrecizarr do pata de ninguém, Alzácia terr tudo que prrecizarr parra serr independente". Dele herdei esta vontade intrínseca de independência e de vontade própria.

Soube que muitos dos meus parentes alsacianos, que falavam normalmente o dialecto alsaciano eram mais pró-francófonos do que pró-germanófilos, emboram todos fossem sobretudo alsacianos e aspirassem à independência da sua terra. Tanto quanto os relatos da família o permitem, soube que alguns combateram na guerra franco-prussiana ao lado dos franceses, que durante a I Guerra Mundial (guerra imperialista num tempo em que a Alsácia era dominada pelos alemães) foram obrigados a combater no exército alemão e, durante a II Guerra Mundial, muitos combateram na resistência francesa contra a ocupação alemã e o nazismo.

A minha avó materna, portuense, pertencente a uma família burguesa do Porto (cujo nome não revelo porque é conhecido e, por isso, em defesa da privacidade de terceiros, mantenho-o no anonimato), era de descendência escocesa. Segundo os relatos que chegaram até mim era uma pessoa autoritária e voluntariosa, dela terei herdado alguma casmurrice.

Deste casamento nasceram três filhas a minha mãe (a mais velha que nasceu alemã, depois de 1918 passou a ser francesa e com o casamento aos 17 anos naturalizou-se portuguesa, aos 20 anos já tinha 3 filhos: 1 rapariga e 2 rapazes, os restantes 3 foram mais espaçados tendo eu nascido por último, lá para meados dos anos 50) e duas gémeas, tendo uma delas morrido com 3 anos e a outra 4 ou cinco anos antes da minha mãe.

Os meus avós paternos, ambos beirões e serranos, eram agricultores. O meu avô, mais aventureiro, andou por terras do Brasil no último quarto do século XIX. Dele herdei o espírito de aventura e descoberta.

Deste casamento nasceram 5 filhos (três rapazes e duas raparigas) sendo o meu pai o mais novo, com uma diferença de idades relativamente grande em relação aos irmãos. Dos seus irmãos só conheci as minhas tias, já com bastante idade, quanto aos meus tios, o mais velho morreu muito antes de eu ter nascido, o outro foi para África (Angola primeiro, Moçambique depois e por lá morreu sem nunca o ter conhecido). O meu pai que também passou algum tempo em Angola, tinha uma verdadeira admiração pelo seu irmão mais velho, com quem vivia em Lisboa quando da implantação da República. Este seu irmão era militar e republicano e chegou a participar na coluna militar chefiada pelo general Abel Hipólito, a qual marchou sobre o Porto para derrudar a "Monarquia do Norte" também conhecida por "Traulitânia" (o nome diz tudo). Dizia a minha mãe que ainda longe do Cinema Olympia (hoje sala de bingo em Passos Manuel) Para onde as tropas monárquicas de Paiva Couceiro levavam os republicanos presos, se ouviam os gritos dos que aqui eram torturados pelos fervorosos adeptos monárquicos

O meu pai, velho republicano, veio para o Porto onde tirou o Curso de Contabilidade, conheceu a minha mãe e à custa de algumas serenatas (era um razoável tocador de guitarra portuguesa) e de uns poemas (por si escritos) lá conquistou o seu coração (como o mundo era romântico). Era uma pessoa austera (pelo menos com a idade assim se tornou), metódica e exigente consigo e com os outros, particularmente com os filhos, por isso tive alguns conflitos geracionais com ele, durante a minha adolescência e juventude, pois não soube adaptar-se às transformações do mundo, particularmente a partir da década de 60. Grande contador de estórias e excelente escritor povou a minha infância de sonhos e despertou a minha curiosidade e imaginação em volta das histórias por si inventadas (contaram-me os meus irmãos que, já adultos, nunca saíam de casa depois de jantar sem perguntar ao meu pai se havia continuação da estória do dia anterior, se ele estivesse com disposição lá criava de improviso a continuação da estória, senão então a continuação ficava para o dia seguinte). este mundo maravilhoso povoado de personagens à semelhança dos deuses do Olimpo, mas em jeito de fábula, com os seus defeitos e virtudes, fraquezas e forças, velhacarias e grandezas, ajudou-me a ter uma infância feliz e aberta para o exterior. Lamento que nunca tenha publicado os seus contos e sobretudo que os tenha destruído, pelo que o que nos resta é a memória oral. Morreu na década de oitenta com 86 anos. A maior alegria que lhe conheci, do ponto de vista político, foi o 25 de Abril e o derrube da ditadura. Dele herdei o rigor e a defesa de princípios e causas, mas a tolerância fui buscá-la à minha mãe.

A minha mãe, morreu há pouco mais de um ano, ia fazer 90 anos. Sempre viva e autónoma, com uma alegria imensa de viver, sempre jovem e alegre, era a matriarca da família. Sempre pronta a ajudar os outros, muitas vezes com dificuldade, mesmo em tempos de escuridão, nunca deixou de ter uma palavra de esperança e teve sempre uma palavra de carinho para os que precisavam, tendo ajudado muita gente, muitos operários e respectivas mulheres, que eram vítimas de perseguição, correndo riscos, mas nunca virando a cara e tendo sempre nos olhos a vivacidade da esperança acreditando que um dia a mudança chegaria. Dela herdei, como disse, a tolerância, mas também a esperança.

Em criança costumava adormecer no seu colo enquanto me contava o Suave Milagre ou O Menino da Mata e o seu Cão Piloto pela enésima vez. Foi também dela herdei esse ar de catraio, que surpreendentemente (para mim) o João Tunes viu numa simples fotografia, depois de uma breve troca de palavras ao telefone. Diz ele "ar de catraio respeitável", aceito o catraio, quanto ao respeitável não sei, sobretudo porque não sei o que é ser respeitável (estou a brincar João e percebi e agradeço as tuas palavras). Um abraço João. Curioso como pessoas que se conhecem há tão pouco tempo e de forma tão superficial, ou não, podem ter e sentir tantas cumplicidades.

NOTA: Este artigo já vai muito longo, por isso interrompo-o por aqui e continuo num dos próximos dias.


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