Entreabir a Porta para o Interior - III
Mas promessas são promessas e se prometi entreabrir as portas, então que o faça até ao fim. O primeiro artigo foi dedicado aos meus avós e família em geral, o segundo foi mais orientado para os meus pais, este será mais para os meus irmãos e terminarei esta saga narcísica com um quarto artigo onde falarei mais de mim próprio.
Mesmo correndo o risco de me repetir, não tive paciência para ler os artigos anteriores, as coisas vão saindo e o que está feito, está feito e ponto final.
Avancemos então que se faz tarde.
Os meus pais casaram civilmente no início dos anos 30, o que abalou alguns sectores mais consevadores da família, curiosamente não os meus avós. Deste casamento nasceram seis filhos. As diferenças de idades dos meus irmãos em relação a mim são de 22, 21, 20, 16 e 10 anos. Nenhum de nós foi baptizado por qualquer religião, tendo os meus pais deixado esse assunto para que cada um de nós decidisse quando chegasse a hora de tomar decisões. Nunca nos esconderam nada deram-nos sempre a liberdade de opção quer religiosa, quer política, informaram-nos e formaram-nos, mas as opções foram sempre tomadas por cada um de nós.

Os meus pais com um dos meus irmãos
na baixa do Porto em meados dos anos 30
O segundo, já falecido, era um homem de porte magnífico, um líder nato, era um pequeno/médio empresário no Porto. Quando jovem andou empenhado nas lutas políticas dos anos 50 inícios de 60, particularmente na campanha do General Sem Medo. Aos vinte e poucos anos teve necessidade de se virar para a religião, teve uma crise de identidade e acabou por optar pelas Testemunhas de Jeová. Empenhado e líder chegou aos cargos mais altos desta seita religiosa (tenho alguma relutância em chamar-lhe religião) e por ela morreu. Acreditando naquilo que defendia, recusou-se a receber sangue alheio na sequência de uma operação mais ou menos banal, mas com complicações pós-operatórias das quais resultaram grandes hemorragias que só podiam ser debeladas com o recurso a transfusões de sangue, que recusou e obrigou os médicos a assinar um documento sobre compromisso de honra que não o fariam mesmo que ficasse inconsciente. Morreu de acordo com as suas próprias convicções e, por mais que discorde das suas, não posso deixar de sentir orgulho por ele, mesmo que considere que o sacrifício da vida por aqueles motivos não me mereçam qualquer consideração. Como todos sabem sou ateu, mas esta "religião" é uma religião assassina, pois não há nada nas escrituras que imponha tamanho sacrifício a não ser através de um fundamentalismo hipócrita, estreito, ignorante, estúpido, tacanho, absurdo e eu sei lá que mais. Nem tenho adjectivos capazes de revelar a minha revolta. Fiel aos princípios transmitidos pelos meus pais nunca tentou convencer nenhum dos irmãos da sua verdade, nem mesmo a mim que sendo muito mais novo poderia ser facilmente influenciado.
Segue-se mais um rapaz. Também já está reformado, foi chefe da contabilidade de uma grande empresa do sector da construção civil aqui no Porto. Senhor de uma bagagem cultural apreciável, foi o menos empenhado politicamente. Possuidor de um humor sarcástico notável podia ter-se destinguido nesta área, mas o seu pragmatismo levou-o para um escritório de contabilidade. Avesso a agitações sempre pautou a sua vida pelo padrão da segurança. É agnóstico e foi aquele que mais marcado terá ficado com a morte do nosso pai, seguindo-lhe escrupulosamente os princípios, mas com menor rigidez. Vive uma vida pacata e fora de grandes agitações, é talvez o mais equilibrado de todos os irmãos, no entanto nota-se-lhe um brilhozinho nos olhos como se na sua cabeça fervilhasse aquilo que deixou de fazer em troca da segurança e da estabilidade da família. É uma pessoa de princípios, que escolheu o seu caminho de acordo com a sua própria personalidade, não seguiu ao sabor das ondas, traçou um objectivo de vida e lá o foi percorrendo, não se desviando nem um milímetro da segurança e estabilidade.
O quarto filho foi mais um rapaz. Sonhador desde infância é o irmão com quem tenho uma relação mais forte e mais próxima, sem menosprezo para nenhum dos outros, Não sou mais amigo de um do que de outro, mas este foi aquele que escolhi, desde ganapo, para ser o meu ídolo com pés de barro. Aventureiro por natureza pautou a sua vida, pauta, pelos impulsos. Senhor de vasta cultura tem um gosto especial por viagens é o mais francófono dos irmãos, pois tem uma especial apetência pela cultura francesa, no entanto fala várias línguas. Casou e esteve perto do tecto do mundo que qualquer família burguesa deesejaria, no entanto o seu espírito irrequieto levou-o ao divórcio, tendo abandonado uma vida de grande prosperidade para viver outra de incerteza e de aventura. Viajou, esteve praticamente em todos os continentes, embora a Europa seja a sua paixão, viveu algum tempo em Barcelona, ainda antes de casar e, mais tarde, depois do divórcio, viveu alguns anos em Bruxelas. Grande conversador e contador de histórias (neste aspecto talvez seja o que se aproxima mais do nosso pai). Militante socilista e maçom, esteve preso pela PIDE, foi um militante anti-salazarista empenhado e participou activamente na campanha do General Humberto Delgado. Do ponto de vista religioso hesita entre a ateísmo e o agnosticismo, mas estou convencido que é mais agnóstico do que ateu, pois é um adepto do grande arquitecto. Foi de facto o meu ídolo e ainda hoje me recuso a olhar para os seus pés de barro.
Finalmente mais uma rapariga. Viva e irrequieta, lembro-me dela de saia rodada a dançar o twist. A sua vida caracterizou-se por grande instabilidade. Fraca aluna, queria ser cantora de ópera, foi estudar para o Conservatório de Música do Porto, por volta dos 14 ou 15 anos quis baptizar-se catolicamente, os meus pais, tolerantes, não criaram qualquer objecção. Casa aos 17 anos pondo fim a uma possível carreira no mundo da ópera (para o qual parecia que tinha jeito), segue para o Zaire (Congo) com o marido, passados anos regressa a Portugal, divorcia-se e volta a casar, segue para o Zimbabwé. Divorcia-se novamente, volta a casar e passa a viver na África do Sul, onde ainda hoje permanece. É de todos os irmãos a que tem convicções menos sólidas, quer do ponto de vista político quer religioso. O facto de ter ido viver para África, não teria eu mais de 10 anos, e de por aí ter ficado durante longos períodos impediu que aquela que era a mais próxima de mim (apesar da diferença de 10 anos pareciamos ambos dois miúdos), foi cortando os elos muito fortes que existiam, no entanto, tal como os outros, ocupa um lugar especial em mim, sobretudo a sua "loucura" que algumas vezes, ao longo da minha vida, me contagiou.
Finalmente venho eu para moer o juízo a todos, mas isso fica para o próximo e derradeiro episódio a escrever brevemente.